Durante o encontro, realizado no dia 21 de outubro, os participantes debateram os parâmetros que envolvem o conceito do emprego rural decente e suas implicações na Amazônia.

Para ampliar o debate sobre as diretrizes e boas práticas na cadeia do açaí sustentável, a rede multissetorial Diálogos Pró-Açaí realizou, em outubro, webinário com atores do setor. O encontro buscou fomentar a adoção de boas práticas na cadeira do fruto, como  uma garantia mínima de produção economicamente viável e  socioambientalmente correta. Participaram da atividade cerca de 70 representantes de organizações que compõem a rede e convidados.

De acordo com Renata Guerreiro, coordenadora de projetos do Instituto Terroá e membro da secretaria executiva da iniciativa, o evento compõe uma das ações estratégicas definidas pela rede. “Nosso objetivo é gerar reflexões sobre parâmetros que envolvem o conceito do emprego rural decente, levantando pontos relacionados às condições de trabalho saudáveis e seguras, como também o cumprimento de regulamentos nacionais e internacionais”, destacou.

Para Talía Bonfante, Assessora Técnica Ecoconsult da GIZ, é fundamental olhar para os aspectos sociais que envolvem a cadeia produtiva do açaí. “A gente não pode falar de sustentabilidade sem olhar para os direitos fundamentais de quem está na ponta operando. Nossa proposta com essa atividade é gerar capacidades e entender os limites sobre tradicionalidade, trabalho infantil, trabalho forçado, violação de direitos e afins. É um espaço para sensibilizar e desenvolver ações sobre a temática”, contou.

 

Direitos Humanos na cadeia do açaí

Os debates durante o evento iniciaram com a apresentação de Ana Cristina Nobre, consultora da GIZ, socióloga, especialista em direitos humanos e aspectos sociais para agricultura e floresta, que desenvolveu o mapeamento dos desafios dos direitos humanos no trabalho na cadeia do açaí. “O objetivo do mapeamento é gerar capacidades e ampliar consciência em espaços como a rede para que incorporem em suas estratégias e intervenções a promoção da cultura de respeito aos direitos humanos e assim criar um GT na temática”, explicou.

A especialista apresentou os principais conceitos sobre direitos humanos com foco nas recomendações da Declaração Universal. “Os direitos humanos são inerentes a todos os humanos, independente de raça, credo, sexo. O principal documento neste sentido é a declaração, que foi elaborada em 1948, no momento em que havia uma necessidade de se estabelecer parâmetros mínimos após percebermos a capacidade da humanidade de fazer atos de extrema violência e em escala global”, reiterou.

O mapeamento realizado incorporou em sua metodologia o conceito de trabalho rural decente, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Segundo Ana, o conceito define trabalho rural decente como aquele que respeita as normas fundamentais de trabalho, tem um rendimento adequado à produção, garante um grau de segurança e estabilidade no emprego, observa a segurança e saúde ocupacional, respeita as horas de trabalho; promove o acesso à formação técnica e profissional adequada.

“O cenário do trabalho na cadeia do açaí, considerando para análise elementos do trabalho rural decente, são a violação dos direitos humanos no trabalho, principalmente nas populações indígenas, ribeirinhas, agricultores familiares, quilombolas, entre as causas estão pobreza, desigualdade social e exploração. O trabalho que estamos desenvolvendo busca incentivar a rede para incidir politicamente e desenvolver ações orientadas para promoção dos direitos humanos”, disse Ana Cristina.

 

Todo mundo que trabalha com açaí tem uma cicatriz no corpo

João Meirelles, diretor geral do Instituto Peabiru, trouxe para o debate reflexões sobre o trabalho precário e trabalho infantil na cadeia global de valor do açaí. Para isso, apresentou dados sobre o diagnóstico das condições de trabalho do extrativista de açaí, realizado em parceria com o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da oitava região – Pará e Amapá. “O açaí é uma atividade do agroextrativismo familiar. A estimativa é de que existam mais de 120 mil famílias desenvolvendo a atividade, com o envolvimento direto de quatro a cinco membros. Com o olhar voltado para o aspecto do trabalho na produção, o que era tido como parte do aprendizado no processo de reprodução da agricultura e extrativismo tradicional passa a ser enquadrado como trabalho precário e infantil”, comenta.

Para João, ao considerar o extrativismo e a agricultura familiar como um serviço multitarefa, é preciso compreender a segurança do trabalho no conjunto das atividades e não apenas na coleta do açaí. “Se levarmos em conta a ampliação da comercialização do açaí e este produto como uma commodity de cadeia de valor global, o peconheiro passou a subir mais vezes para apanhar açaí do que para subsistência, o risco aumenta muito pela frequência, quem sobe são os mais jovens, pois são ágeis e buscam participar da economia da família”, destaca Meirelles.

De acordo com o gestor, o mais grave nesse cenário é a invisibilidade do peconheiro – trabalhador que sobe na palmeira de açaí até a copa para coletar o fruto -, pelos elos fortes da cadeia, como indústrias, atacadistas, varejistas, batedores. “Eles não se responsabilizam pela segurança do trabalhador. A longo prazo, o esforço nos pés e pernas para subir nas árvores vai gerar consequências permanentes, por exemplo”, argumentou João.

Durante a safra do açaí, a pesquisa observou a alta evasão escolar de crianças e adolescentes, o que corrobora com baixos índices educacionais. “Esse mapa que mostra que a evasão escolar é um problema nesse período, também confirma que a atividade envolve crianças no processo”, afirmou.

Meirelles apresentou os principais resultados do diagnóstico que confirmou a informalidade nas relações de trabalho, presença de mão de obra infantil, o açaí como a principal fonte de renda, cerca de 89% dos participantes já haviam sofrido acidentes de trabalho. “Não há registro de trabalho análogo à escravidão no açaí, mas a empreita informal é algo comum que precisa ser estudado”, completou.

O projeto gerou orientações e recomendações para o setor, como uso de roupas e equipamentos que gerem segurança, bainhas para facas e terçados, inclusão das questões sobre segurança no trabalho na agenda deas ações de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), relacionar a liberação de crédito ao produtor à verificação da segurança no trabalho, envolver peconheiros e famílias nas discussões sobre segurança para entender os riscos da atividade, informar o consumidor sobre a ausência de trabalho infantil na produção, envolver todos os elos da cadeia no debate, indústrias e batedeiras devem se responsabilizar pelo açaí que chega até elas, elaboração de protocolo de segurança pelos órgãos fiscalizadores para monitoramento e acesso da sociedade civil e a instalação do observatório de segurança no trabalho do açaí.

Lara Pontes, presidente da Pontes Indústrias de Cera, que atua com o beneficiamento da carnaúba, contou sua experiência na adequação das relações trabalhistas com os produtores extrativistas que atuam na cadeia do produto. “A carnaúba é uma espécie nativa do nordeste que produz um pó cerífero usado em diferentes setores. O manejo da espécie é uma atividade tradicional na região e durante muito tempo o trabalho foi extremamente informal e inadequado, até que o Ministério Público do Trabalho interviu e registrou atividades degradantes e trabalho infantil na cadeia”, comentou Lara.

Após os estudos realizados em campo, o MPT procurou as empresas para que estabelecessem um processo de transparência em toda cadeia produtiva. “Em 2016, a Pontes assinou um Termo de Ajuste de Conduta para tornar transparente a cadeia produtiva e compartilhar com o MPT essas informações. Nos comprometemos em fazer auditoria para garantir que não teríamos trabalho degradante por parte dos trabalhadores que fornecem o produto. O mundo não aceita trabalho escravo nem infantil e ninguém deveria aceitar. A mudança começa quando a gente diz que não quer isso e arregaça as mangas e começa a trabalhar”, reitera.

A própria empresa chegou a entregar os primeiros Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e contratou um time para iniciar as adequações, tanto trabalhistas quanto de qualidade na produção e segurança no trabalho. Além das capacitações, a empresa investiu nas certificações, para mostrar ao mercado as diferenças de seus produtos daqueles ofertados por outras empresas.

Luís Fernando Iozzi, diretor de projetos do Instituto Terroá e membro da Secretaria Executiva dos Diálogos Pró-Açaí, apontou os encaminhamentos finais do evento e convidou os presentes para seguirem dialogando sobre o tema no Grupo de Trabalho (GT) de Direitos Humanos da rede multissetorial Diálogos Pró-Açaí, em processo de elaboração.  “Esse tema vem sendo colocado há algum tempo como importante para o Diálogos e estamos tentando chegar em proposições práticas efetivas. Vamos refletir juntos: o que essa rede, que é multissetorial, pode propor nessa linha de compromissos públicos. Qualquer forma de trabalho que não seja decente precisa ser combatida”, defendeu Iozzi.


Diálogos Pró-Açaí

A iniciativa Diálogos Pró-Açaí é uma rede multissetorial criada em 2018 com  o propósito de promover um debate qualificado em prol do fortalecimento e  da sustentabilidade desta importante cadeia da sociobiodiversidade.  Atualmente, a iniciativa conta com 70 organizações parceiras e envolve mais  de 100 representantes de setores governamentais, empresas, cooperativas e  associações, instituições financeiras, incubadoras/aceleradoras, redes  nacionais multissetoriais, sistemas de certificação, organizações do terceiro  setor, universidades, centros de pesquisa e de assistência técnica.

A iniciativa se originou do “Projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável”,  parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)  e a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), contando  com o apoio de execução do consórcio IPAM/EcoConsult e Instituto Terroá.  Atualmente as mesmas organizações desta cooperação apoiam a iniciativa  por meio do Projeto “Bioeconomia e Cadeias de Valor”.

Para assistir a gravação do evento, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=HnUl-zrF34g&t=4634s

 

Compartilhar: